NÃO VENHO MAIS TRENÁ
(Estória criada por Nédio Vani, disponível em www.bolichodogaudério.com.br – Adaptação feita por Branco Melatti)
Hoje em dia o que mais existe no futebol são os “olheiros” e empresários que ganham fortunas garimpando e vendendo jogadores que ainda nem jogaram em times profissionais. Existem escolinhas de futebol em todos os cantos do País e até mesmo os clubes famosos do exterior fazem “peneiradas” buscando jovens talentos brasileiros que sonham se tornar grandes jogadores.
Mas nem sempre foi assim. Por exemplo, quando surgiu o Esporte Clube Cobra Preta, o treinador Ataliba Flores era quem aprovava ou reprovava aqueles que queriam jogar no time.
Nos seus primórdios o Cobra era um time de futebol de campo, pois na década de 1960 ainda não existia o futebol de salão na cidade de Getúlio Vargas. Com o passar do tempo a equipe começou a tomar corpo e ficou famosa por disputar e vencer torneios na cidade e no interior, destacando seu nome na região.
Por isso sempre apareciam atletas querendo “fazer teste” na equipe de futebol de campo. O Ataliba fazia os testes com os jogadores colocando-os para jogar em jogos amistosos, realizados aos domingos, pois apesar de ter sede social o Cobra Preta não tinha campo de treinamento e a maioria dos jogadores trabalhava durante o dia e estudava à noite.
Muitos testes deram certo, revelando craques que vestiram com maestria a camisa preto-amarela e depois seguiram jogando por outros times de várias cidades do Brasil.
Mas outros testes não deram certo…
Certa vez apareceu o tal do nego Ortidore, um sujeito humilde e sem muito “esclarecimento”, morador na parte alta de Getúlio Vargas, bem prá lá do campo do Guaíba, que ficava insistindo e enchendo o saco do treinador Ataliba, para fazer teste como goleiro.
O Ataliba, já de saco cheio de tanta insistência, resolveu levar o Ortidore num jogo amistoso do Cobra Preta no distrito de Linha Formiga, interior de Getúlio Vargas. A delegação com 16 pessoas foi numa Kombi, pois nessa época ninguém tinha automóvel. O Ortidore estava feliz da vida em fazer parte daquele seleto e alegre grupo de rapazes do “centro” da cidade.
Para testar o Ortidore como Goleiro do time, o Ataliba o colocou para jogar logo no início da partida, escalando-o como titular. Lá pelos 12 minutos do primeiro tempo, placar de 0 x 0, um atacante do time adversário partiu com a bola dominada, passou pela zaga e correu sozinho em direção ao gol do Cobra. Ficaram no lance somente o atacante e o nosso goleiro, o Ortidore.
Nisso, o Ataliba levantou-se bruscamente do banco e gritou para o Ortidore:
– SAI. SAI DO GOL. SAI DO GOL. (era para ele sair e pegar a bola)
O Ortidore obedeceu. Saiu do gol, deixou o atacante entrar com bola e tudo, chegou no banco de reservas e disse:
– Olha aqui seu Atalíbio, se for prá jogar só 10 minutos eu não venho mais trená…
QUEM MANDA NO TIME SOU EU!
Autores: Beto Melatti e Branco Melatti
Em agosto de 2010 na sua estréia na seleção brasileira, quando o Brasil venceu os Estados Unidos por 2 x 0, o técnico Mano Menezes após estudar as estratégias adotadas por grandes treinadores, simplesmente copiou o que o grande Ataliba Flores fazia no comando técnico dos times do Cobra Preta: piazada, entrem em campo, vão lá e façam o que sabem fazer: jogar bola.
Ou seja, o Ataliba sempre deixou que os seus jogadores criassem naturalmente as estratégias de jogo, segundo as habilidades e a categoria de cada atleta. Admirador do futebol arte, especialista em mostrar caminhos, indicar pistas, fazer o jogador “ver” e acreditar no próprio talento, ele apenas escalava o time e deixava o jogo seguir.
Ao longo de sua carreira o Ataliba sempre foi um treinador educado, suave no trato com as pessoas e gentil nas palavras, calmo que nem água de poço, amigo dos jogadores, enfim, um verdadeiro gentleman que, segundo alguns cronistas, serviu de inspiração para o comportamento do Mestre Telê Santana na copa de 1982.
Mas a relação do Bita com seus comandados nem sempre foi um mar de rosas. Houve momentos em que ele teve que ser enérgico, linha dura, agindo bem ao estilo “Felipão”.
Uma das poucas vezes que isso ocorreu foi nos idos de 1980, quando o time de futebol de salão do Cobra Preta foi excursionar na cidade de SEARA, em Santa Catarina.
Um dos timaços do Cobra, formado por Gavião, Adelci, Lebrão, Paulão, Pintado e Beto, entre outros craques, foi convidado a participar de um torneio em comemoração ao aniversário da citada cidade, tendo que disputar vários jogos num mesmo dia.
Acontece que a delegação que se deslocou de Getúlio Vargas até aquela cidade foi composta por apenas 6 ou 7 jogadores, portanto não dava para ficar jogando o dia todo sem fazer revezamentos entre os atletas.
Já na fase final do torneio, quando o público começava a lotar o ginásio de esportes de Seara, o Ataliba ficou assistindo aos jogos para observar a performance dos adversários que iria enfrentar na fase final, enquanto os jogadores do Cobra foram para o vestiário se preparar para os próximos jogos.
Então o Beto, o Lebrão, o Adelci e o Gavião pegaram a caixinha de massagens, onde havia um desenho representando uma quadra de futebol que o Ataliba usava nas preleções e começaram a especular sobre a próxima partida, colocando sobre a caixinha algumas tampinhas de garrafas representando os jogadores, suas posições na quadra e o comportamento tático que deveriam ter.
Nisso o Ataliba foi para o vestiário e deu de cara com a aquela cena: vários jogadores ao redor da caixinha, com o Beto e Adelci dizendo que a melhor escalação para jogar a semifinal seria: Gavião, Adelci, Lebrão, Gil e Beto.
Talvez cansado da viagem feita de Kombi e pelo desgaste na disputa dos jogos, o Bita interpretou erroneamente a situação e esquecendo seu jeito educado, ficou furioso e, gritando, chutou a caixa de massagens.
Voaram tampinhas prá todos os lados:
– SEUS MOLEQUES, QUEM VOCÊS PENSAM QUE SÃO PARA QUERER ESCALAR O TIME !!!
– VOCÊS NÃO SABEM QUE O TREINADOR DESSE TIME SOU EU !!!
– E ENQUANTO FOR O TREINADOR QUEM MANDA SOU EU !!!
Os jogadores tentaram explicar o mal entendido, mas ele ficou muito sério e fez de conta que não aceitou as desculpas:
– Vão todos prá quadra se aquecer pro jogo!!
Então gritou:
E O TIME QUE VAI SAIR JOGANDO É ESTE: GAVIÃO, ADELCI, LEBRÃO, BETO e GIL!
Foi uma risada geral por parte do grupo.
No final de tudo o Cobra meteu 7 a 2 na seleção de Joaçaba na semifinal e lascou 3 a 0 no time de Concórdia na decisão do torneio, levando pra casa mais um troféu de campeão.
PRESIDENTE NO MEIO DO MATO
Autores: Beto Melatti e Branco Melatti
Houve uma época que em todos os domingos o Esporte Clube Cobra Preta fazia incursões futebolísticas participando de jogos amistosos e torneios nos distritos, povoados e lugarejos do município de Getúlio Vargas.
Todos esperavam com ansiedade pela chegada do final de semana, porque no domingo à tarde não tinha nada para fazer na cidade de Getúlio Vargas. Essas pequenas viagens eram verdadeiras festas. Geralmente o ônibus da linha Prezzotto saía depois do meio-dia do prédio dos Melatti ou da Lancheria Zadra.
Assim que a delegação pegava a estrada, lá vinha o Ataliba arrecadando o valor da passagem de cada jogador. Alguns alegavam não ter dinheiro, outros reclamavam do preço ou trocavam de assento querendo “driblar” o Bita. Ele dizia que não queria saber de débitos, que já tinha muita gente com a “mensalidade” em atraso e que todos tinham que contribuir, mas ia aos poucos relevando e acomodando cada situação. No fundo, tudo aquilo era uma grande e saudável gozação.
Nessas idas ao interior, a maioria queria mesmo ir jogar bola, outros só iam para namorar as gurias da colônia e uns poucos gostavam de beber uns tragos. Estes, sabiam que se bebessem na viagem de ida não iriam jogar nem no “cascudo”, então jogavam bem e bebiam na viagem de volta. Geralmente voltávamos cantando e muito felizes no retorno pra casa.
Acontecia de tudo nesses jogos. Houve ocasiões em que tivemos que fugir de alguns lugares para não apanhar dos “anfitriões”, pelo fato de nossos jogadores terem cometido alguma inconveniência dentro ou fora do campo. Mas geralmente os times titular e aspirante do Cobra Preta eram muito respeitados e bem recebidos nas comunidades do interior, sendo que em muitas vezes nossas despesas de comida e bebidas eram custeadas pelos times da casa.
Certa vez o Cobra foi jogar no então Distrito de Ipiranga. Bela manhã de domingo, dia claro, céu de brigadeiro. Como naqueles tempos as estações do ano eram normais não havia os efeitos do “el niño”. Ninguém se preocupava em ver as previsões do tempo.
O jogo foi tranquilo, muitos dos rapazes de Getúlio Vargas passaram a tarde paquerando as gurias de Ipiranga. O Cobra, como de hábito, venceu com folga as partidas: 5 x 2 no aspirante e 3 x 1 no titular.
Na saída de Ipiranga o Presidente Ataliba estava muito contente. Além de ter vencido os jogos, reforçando a tradição da camisa do Cobra Preta no interior de Getúlio Vargas, a agremiação havia arrecadado 160,00 pilas nas passagens e recebido mais 200,00 de “cachê” pela ida até aquela localidade. Como o fretamento do ônibus custava 140,00 haveria uma “folga de caixa” para pagar outras despesas.
Então aconteceu o inesperado: lá pelas 5 horas da tarde enfrentamos uma tempestade típica de verão. O mundo desabou em forma de chuva. São Pedro abriu as torneiras e mirou no trajeto daquela delegação. Era água que não acabava mais. Devido às precárias condições da estrada, o ônibus do Prezzotto, dirigido pelo “Peroba”, enfrentou sérias dificuldades.
O “Peroba” tentou com muita habilidade conduzir o ônibus no meio do barro. Num certo trecho o veículo deslizou na lama e bateu num barranco, estourando dois vidros do lado esquerdo. Assim mesmo, o motorista teimou em transitar naquele atoleiro. De repente, batemos noutro barranco e mais alguns vidros foram arrebentados. O Ataliba exclamou: se foram embora os lucros da excursão!!
Na primeira subida da estrada não teve mais jeito. Atolamos. A turma toda desceu para empurrar, mas o lamaçal era tanto que não foi possível desencalhar o ônibus. O Ataliba passou a ficar nervoso, pois era o responsável por toda aquela gurizada. O “Peroba” ficou angustiado porque não sabia onde procurar socorro.
Ficamos parados e sujos de barro no meio da estrada. Alguém resolveu buscar ajuda. Veio um colono com uma junta de bois e tentou, sem sucesso, puxar o veículo. Meia hora depois apareceu um agricultor com um trator. Mas nem isso deu jeito de tirar o ônibus da valeta.
A turma levava tudo na maior gozação, ninguém estava se importando muito com a situação. Então o Gainor na maior das ironias disse: “Só nos resta rezar”!!
Ouvindo isso o “Peroba” ergueu as mãos para os céus, olhou sério para toda a gurizada e naquele seu sotaque que não pronunciava a letra R, disse:
– “guris, rezem, mas rezem com fé”.
Era só gente baixando a cabeça ou olhando para os lados para disfarçar o riso…
Lá pelas tantas, cansados de esperar, a maior parte da delegação resolveu ir embora a pé, apesar da distância. Era só andar uns 8 kilometros até a Estação, se lavar em algum posto de gasolina, pegar o ônibus de linha do Prezzotto e desembarcar em Getúlio.
O Ataliba não gostou da idéia, achou que todos deveriam ficar juntos, pois o ônibus e o fardamento não poderiam ser abandonados ali na estrada.
Não demos ouvido às palavras do Presidente e saímos andando no meio do barro. Meia dúzia de atletas puxa-sacos do treinador ficou com ele, achando que com essa atitude ganhariam uma vaga no time titular.
O ônibus ficou na estrada e só foi rebocado na manhã de segunda-feira. Depois do almoço, como era de costume, a turma se reuniu na frente do prédio dos Melatti, para comentar o jogo ou fatos ocorridos no final de semana.
Nisso chegou o Ataliba esbravejando e dizendo que a partir daquele momento não era mais o presidente do Cobra, porque não havia mais união no time e ninguém se importava se o ônibus ficasse por lá ou se o fardamento tivesse sumido.
O lamento dele era por terem “abandonado o Presidente no meio do mato”.
O LIVRO DE MENSALIDADES
Autores: Beto Melatti e Branco Melatti
Nos últimos anos tornou-se mania nacional a participação de sócios na vida dos times de futebol. Seguidamente os grandes clubes fazem campanhas de marketing tentando angariar mais contribuintes, o tal do sócio-torcedor.
Dizem os colorados que o Internacional tem mais de 100.000 sócios. Os tricolores falam que o Grêmio conta com quase 90.000 e as pesquisas mostram que grandes clubes do exterior como Benfica, Barcelona e Manchester United ultrapassam em muito esses números.
Mas o que muita gente não sabe, nem mesmo a gauchada, é que esse negócio de “pegar” dinheiro dos sócios começou no Esporte Clube Cobra Preta, que sempre foi um clube muito popular na cidade de Getúlio Vargas, tendo um grande número de torcedores e simpatizantes.
Desde a sua fundação a agremiação enfrentou problemas financeiros, devido não possuir renda ou patrocínios graúdos que a mantivessem. Foi por causa disso que o treinador-presidente Ataliba inventou um certo Livro de Mensalidades, no começo da década de 1970, para fazer frente às despesas do clube.
Sabendo onde os jogadores e admiradores do time trabalhavam e quanto cada um ganhava por mês, ele começou a recolher uma arrecadação mensal, com vencimento no dia 1º.
Então, sempre no primeiro dia do mês, lá vinha o Bita com o seu livro de coleta. E era um cobrador insistente e chato. Se livrar dele nessa hora era mais difícil do que nadar de poncho.
Por mais que os contribuintes pagassem em dia, na visão do Ataliba sempre alguns deles estavam com as mensalidades “atrasadas”.
Como o caráter e a honestidade do Ataliba sempre foram inquestionáveis, não havia necessidade dele prestar contas dos valores recebidos e das despesas quitadas. E, além disso, todos sabiam que a arrecadação era miúda e mal dava para pagar a lavagem dos uniformes, comprar uma bola e ou quitar a luz e água da sede social.
Mas como a turma era muito divertida e adorava uma gozação, alguns atletas, com o único intuito de provocar o Mestre Bita, começaram a solicitar uma “prestação de contas dos últimos 5 anos”.
O Ataliba sempre protelava a tal prestação de contas, alegando que estava sem tempo em virtude de estar trabalhando muito ou porque estava preocupado com a montagem do time para o próximo campeonato.
Mas a verdade era que ele sempre havia sido meio desligado desse negócio de contabilidade, débito e crédito, receita e despesa. Mesmo no seu ofício de marceneiro, a vizinhança inteira sabia que nesse aspecto o Ataliba era muito sossegado e não controlava muito bem os pagamentos recebidos dos seus fregueses, ou seja, não tinha muita certeza de quem havia pago pelos seus serviços ou quem ainda estava lhe devendo dinheiro.
O tempo passava, a turma solicitava, mas nada da tal “prestação de contas”.
O Ataliba morava perto do campo do Taguá e nos fundos da sua casa passava o rio Abaúna, que naquela época serpenteava a área urbana de Getúlio Vargas, dando à cidade o famoso título de Capital das Pontes.
Eis que naquele mês de agosto choveu torrencialmente na cidade, fazendo transbordar o Abaúna e a água acabou cobrindo as ruas e invadindo as casas.
A rua onde morava o Ataliba foi uma das primeiras a ser inundada e as pessoas tiveram que abandonar suas casas, algumas se utilizando de canoas.
Naquela mesma semana, por ironia do destino, estavam em cartaz dois filmes no Cine Teatro Vera Cruz: “E o Vento Levou” e “As sandálias do Pescador”. Isso foi a deixa para o Mestre dar a sentença definitiva sobre o “livro de mensalidades”.
Na primeira oportunidade em que se encontrou, na frente do prédio dos Melatti, com toda aquela turma que cobrava a tal “prestação de contas”, ele lascou em tom bastante seguro:
– “Pessoal, agora que estava tudo pronto para prestar contas, minha casa foi inundada e SE FOI EMBORA o “Livro das Mensalidades”. A ÁGUA LEVOU!
E concluiu:
– “Sorte nossa que o João Minhóis foi pescar na segunda cachoeira depois da enchente e acabou fisgando sem querer uma parte do caderno”
– “Por isso eu sei muito bem quem ainda está com a mensalidade atrasada…”
E começou a cobrar todos os sócios de novo…