MINHA ESTREIA NO COBRA
Autor: Branco Melatti
Na década de 1960 todos os times de futebol amador, times de escolas, times de guris de bairros e vilas, tinham a sua “caixinha de massagens”. Cada caixa de massagens era exclusiva, diferenciada, customizada. Geralmente era pintada com nome do time ou do colégio. Lembro que o Nei Pereira tinha um time chamado Santos, que nunca ganhava do nosso “Cobrinha”. Mesmo naquela época poucas pessoas davam a devida importância aos acessórios que acompanham os jogos de futebol.
Em 1969, eu tinha 11 anos e ajudei o Mestre Ataliba a fazer uma nova caixa de massagens para o time principal do Cobra Preta. Ele fez a caixinha, com algumas repartições internas e eu a pintei de branco. Em seguida ele desenhou uma cruz vermelha na frente da caixa e escreveu em cor preta E.C.C.P. na parte de trás.
Eu sempre soube que ECCP significava Esporte Clube Cobra Preta, que era o time da minha família, da minha rua, do meu coração. Mas ficava imaginando o que aquilo tinha a ver com a sigla CCCP, de um time de camiseta vermelha, que havia ficado em 4º lugar na Copa do Mundo de 1966 disputada na Inglaterra. Muitos anos depois, fui descobrir na internet que CCCP significava URSS no idioma russo cirílico.
O que havia na caixa? Vidrinhos de mercúrio, álcool e cânfora, analgésicos, uns comprimidos de melhoral, esparadrapos, pomadas, ataduras e outras coisas que, suponho, o Ataliba ganhava em alguma farmácia da cidade.
Enquanto fabricávamos a caixa de remédios, o Ataliba ficava me dizendo da importância de outras caixas de massagens que participavam de grandes jogos de futebol. Na sua voz pausada ele dizia assim: “imagina, Branco, como deve ser a caixa de remédios do time do Taguá, as maletas dos massagistas dos Grenais, a caixa de massagens usada pelo Mario Américo nos jogos da seleção brasileira, nas finais da copa do mundo…a nossa também será assim”.
Eu ficava pensando no efeito mágico que tais óleos, pomadas e cremes deviam fazer no campo de jogo, nos pés de craques como Ademir da Guia, Gerson, Alcindo, Rivelino, Danilo do Taguá, Dirceu Lopes, Didi, Tostão, Pelé, Jairzinho…
Minha estreia no Cobra foi levar a maletinha de massagens num jogo realizado pelo Campeonato Getuliense de Futebol de Salão de 1969 envolvendo o Cobra Preta contra o time da Serramalte. Fiquei o jogo inteiro segurando a maleta, para o caso de algum atleta precisar de atendimento, o que naquele dia não aconteceu.
Depois dessa estreia a situação se repetiu por muitos jogos. Lembro que nos intervalos das partidas eu passava a caixinha para as mãos calejadas do mestre marceneiro-treinador Ataliba, que ia com ela para o vestiário reforçar a preleção aos jogadores.
Não sei por que ele fazia aquilo. Ir ao vestiário com a caixinha de massagens para fazer a preleção. Mas como ele era o treinador vitalício do Cobra e naquela época os treinadores eram muito respeitados, eu nunca ousei perguntar.
Será que o Ataliba usava o formato retangular da caixinha para simular a quadra de futebol? E ficava criando esquemas e dando instruções táticas aos jogadores, mandando aproveitar espaços, chutar de tal jeito e coisas assim? Geralmente dava certo e no segundo tempo o time do Cobra acabava jogando melhor e muitas vezes virava o placar.
Aquela caixinha de massagens que fizemos acompanhou os times do Cobra por muito tempo e depois certamente foram feitas outras caixas, que nos dias de hoje são substituídas por bolsas, mochilas de couro ou algo parecido.
Na última vez que estive com o Ataliba, em maio de 2000, contei a ele essa estória, dizendo que eu tinha sido muito feliz na minha estreia no Cobra e devia isso a ele. Um pouco debilitado, ele apenas sorriu e me deu um carinhoso abraço.
Naquele momento a lembrança daquela caixinha voltou à minha memória, com suas cores e o cheiro daqueles esparadrapos, vidrinhos de álcool, pomadas…
Passados tantos anos me pergunto: será que ela ainda existe? E se existir, onde estará? Jogada num canto qualquer da casa de um veterano jogador do Cobra? Esquecida num porão junto a móveis empoeirados? No quarto de um menino que não conhece esta estória e guarda na caixa sua coleção de figurinhas de jogadores de futebol?
Embora lá estejam guardados muitos dos meus sonhos de guri, eu não preciso reavê-la, porque aquela caixinha, as lembranças do Bita e do Cobra Preta continuam existindo dentro de mim.