PROFESSOR

 

Autor: Branco Melatti

Atualmente os jogadores de futebol chamam seus treinadores de “professores”. Os verdadeiros professores não gostam muito da comparação, principalmente aqueles que possuem titulação em nível de mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Mas para fazer justiça devo reconhecer que alguns poucos treinadores merecem ser chamados de professores.

Para ser professor é preciso ter vocação, estudo, dedicação, quase um sacerdócio. Nem todo professor é um Mestre, mas todo Mestre é professor, no sentido completo da palavra. O Mestre não precisa necessariamente freqüentar escolas para receber ensinamentos formais, pois pode superá-los através da experiência, vivência e sabedoria.

No mundo do futebol, quando nas entrevistas os jogadores se referem aos treinadores como professores, o que eles querem dizer é que tem um comandante, um guia ou líder que os motiva e inspira a buscarem melhores desempenhos. Para esses jogadores Líder é sinônimo de Professor.

Numa das minhas aulas na Universidade, quando debatia com os alunos sobre o tema Liderança, pedi a eles alguns exemplos de Líderes. Choveram respostas: Jesus, Ghandi, Obama, Fidel, Lula, o Papa, Antonio Ermírio, Abílio Diniz.

De repente, um aluno perguntou:
– e aí professor, quem é o seu exemplo de liderança?

Minha resposta estava pronta, programada:
– Meu exemplo de liderança é o Ataliba José Flores, um dos meus primeiros professores.

Como meus alunos não sabem quem foi Ataliba José Flores, fizeram respeitoso silêncio, esperando pela continuidade da minha exposição.

Prossegui dizendo a eles que a liderança não é inata ao ser humano e que embora algumas pessoas possuam naturalmente mais carisma e habilidades de comunicação e persuasão, a liderança pode ser aprendida, isto é, pode ser desenvolvida.

Ressaltei que o verdadeiro líder é aquele que influencia e inspira as pessoas a atingirem objetivos, alcançar resultados. Muitas vezes o líder não está mais presente e mesmo assim a equipe continua realizando e atingindo os sonhos anteriormente propostos.

Citando autores e definindo conceitos de líder, encerrei o tema dizendo que por isso o Ataliba Flores era para mim um exemplo de liderança.

Depois de terminada a aula, já em casa, comecei a pensar sobre as influências do Mestre Ataliba na minha vida e no Esporte Clube Cobra Preta.

Com ele aprendi coisas importantes, mas acima de tudo a gostar de futebol e do Esporte Clube Cobra Preta. Acredito que ele me influenciou muito mais que os professores das escolas formais que frequentei, principalmente em se tratando de disciplina, valorização do trabalho, honestidade e humildade, aspectos que foram ajudando a formar meu caráter durante a infância e adolescência vividas na cidade de Getúlio Vargas.

Ele não se envergonhava em cobrar mensalidades dos jogadores e simpatizantes do clube, fazer rifas e sorteios ou em pedir dinheiro no comércio para cobrir as despesas da agremiação.

Ele não se intimidava, mesmo sem dinheiro, em fretar um ônibus a cada domingo, para levar os times titular e aspirante ao interior do município para disputar os famosos “torneio-início” ou jogos amistosos, angariando recursos e, em algumas oportunidades, trazendo ovelhas ou bezerros como prêmios.

Ele não se incomodava em recolher depois dos jogos, as meias, calções e camisetas usadas pelos jogadores, conferindo-os e juntando-os de acordo com a numeração.

Uma das mais agradáveis recordações da minha infância é lembrar do Ataliba chegando em minha casa na manhã de segunda feira com os uniformes do Cobra Preta para minha mãe lavar. Depois da roupa lavada no tanque, eu ficava observando o balançar das camisas secando no varal, admirando o distintivo do time e os números das camisas: 8, 11, 14, 5, 7… Ficava contando o tempo que faltava para eu crescer e imaginava um dia jogar com uma daquelas camisas. Muitas vezes enquanto a mãe colocava peças no tanque eu vestia uma das camisas ainda suja e saía correndo pelo quintal, dando dribles, passes e chutes com minha bola de pano.

Nos meus doze anos de idade diariamente eu o ajudava (ou atrapalhava?) na oficina de altares Dallacorte, onde na maior parte do tempo passando às suas mãos madeiras, pincéis, tintas e vernizes, apenas ficava olhando ele trabalhar.

Seu Ataliba fazia de tudo em se tratando de móveis: mesas, bancos, guarda-roupas, armários. Inteligente, criativo, habilidoso. Consertava e reformava, inventava novas peças. Anotava os serviços e os nomes dos fregueses numa caderneta, mas não fazia anotações precisas sobre os clientes mais frequentes, aqueles que eram vizinhos ou mais conhecidos. Destes, aliás, acredito que não cobrava muitos dos serviços executados. Várias vezes eu o via em dúvida, por não lembrar se a pessoa havia pago pelo serviço. Então eu confirmava, pois de alguns eu mesmo havia recebido o pagamento e repassado a ele.

Durante a execução de seu trabalho semanal na oficina, sempre com o lápis atrás da orelha e o metro dobrado no bolso, ele ficava me contando sobre os jogos do Cobra Preta.

Em sua sabedoria, ele compreendia que na minha cabeça de guri eu não poderia absorver tudo aquilo que dizia. Então falava mais baixo e suave do que de costume, falava para si mesmo, fazendo uma espécie de reflexão sobre o que havia ocorrido durante a semana na vida do Esporte Clube Cobra Preta.

Não havia um dia sequer que não comentasse a respeito do time e, enquanto arrumava e encaixava as peças dos móveis que fabricava, ia falando daquilo que tinha que fazer no time, no desempenho dos jogadores, na escalação para o próximo jogo, nas despesas a serem quitadas, nas competições e campeonatos a serem disputados.

Por isso é que o Ataliba não precisava falar muito antes e durante os jogos. Nem depois. Tudo já havia sido previamente construído durante a semana na sua grande cabeça.

Cabeça de arquiteto, visão de marceneiro, linguagem de artesão.

Mestre. Líder.

Professor.