O MESTRE ATALIBA
Autor: Paulo Roberto Dalacorte
“Não há mestre que não possa ser aluno” – Baltasar
Sábado chuvoso e escurecendo cedo. O Grêmio, neste momento, classificado para disputar a Libertadores do próximo ano, juntamente com o Inter. Vamos lentamente terminando mais um dia de futebol no Fuxicão Lanches. Melancólico dia, diga-se de passagem. Nem das discussões que sempre acontecem após o jogo eu participei. Triste e cabisbaixo fui me recolhendo mais cedo ao lar.
Sentei-me defronte ao computador e resolvi escrever algumas frases em homenagem a um incentivador do futebol local. Este 18 de novembro de 2006 deixará uma lacuna aos desportistas da região e amigos pessoais do Ataliba Flores. O Mestre como costumávamos chamá-lo, partiu. Filho de Seu Octaviano e Dona Alice, nasceu em Getulio Vargas no ano de 1937. Foi casado com Leonilda Morilos, “a Meca”, como ele a chamava. Teve três filhos: a Rosana, o Flávio e a Fernanda.
Sempre ligado a nossa família, foi na antiga Oficina de Altares dos Irmãos Dalacorte, localizada na Alexandre Bramatti, nº 959, que o Ataliba fez sua vida profissional como marceneiro, onde inclusive se aposentou. Deixou espalhados pela cidade muitos móveis construídos e reformados por ele naquele local. No papel e no projeto, que eu saiba, ficou apenas um pequeno altar. Sonho dele e de meu pai, para doarem a alguma capela local e se lembrarem dos velhos e bons tempos da fábrica de altares.
A última imagem e fala que guardarei do Ataliba me reporta ao mês de abril de 2003. Esteve em uma reunião do Instituto Histórico e Geográfico de Getúlio Vargas, a convite de sua prima Lisolete Farias Stawinski. Na ocasião gravou uma entrevista para o projeto Memória Oral Getuliense. Os interessados podem ouvi-la no IHGGV, onde se encontra disponível. Consciente, e por fim emocionado, narrou sua trajetória de vida. Falou da sua infância, da juventude, seu trabalho, sua família e a agremiação pela qual tinha tanto carinho: o Esporte Clube Cobra Preta.
Entidade que, justa e merecidamente, colocou o seu nome como de Patrono do Clube, quando ainda em vida, porque a imagem do Esporte Clube Cobra Preta se associa com a do Ataliba Flores. Grande parte do prestígio, das conquistas municipais e regionais alcançadas pelo Clube se deve à dedicação, à perseverança e ao trabalho pessoal dele. O “cabeção”, como carinhosamente o chamávamos, foi jogador, treinador, presidente e, nas horas vagas, ainda atuava como massagista de seus atletas lesionados. Costumava dizer seguidamente a sua esposa, segundo palavras dela: “Meca, minha primeira paixão foi e sempre será o Cobra Preta”.
E, com seu clube do coração teve inúmeras alegrias e façanhas. Provavelmente, neste momento esteja contando alguma delas nas fronteiras do Além. Ou talvez, iniciando novamente como aluno. Para, adiante, depois de conhecido o “campinho”, planejar um Cobra Preta com atletas anjos, no jardim do Éden.
Enfim, cansado, vou recostar minha cabeça no travesseiro e dormir. Mas antes, quando deitar, lembrarei que a cama onde durmo foi obra do Mestre Ataliba Flores.
MINHA ESTREIA NO COBRA
Autor: Branco Melatti
Na década de 1960 todos os times de futebol amador, times de escolas, times de guris de bairros e vilas, tinham a sua “caixinha de massagens”. Cada caixa de massagens era exclusiva, diferenciada, customizada. Geralmente era pintada com nome do time ou do colégio. Lembro que o Nei Pereira tinha um time chamado Santos, que nunca ganhava do nosso “Cobrinha”. Mesmo naquela época poucas pessoas davam a devida importância aos acessórios que acompanham os jogos de futebol.
Em 1969, eu tinha 11 anos e ajudei o Mestre Ataliba a fazer uma nova caixa de massagens para o time principal do Cobra Preta. Ele fez a caixinha, com algumas repartições internas e eu a pintei de branco. Em seguida ele desenhou uma cruz vermelha na frente da caixa e escreveu em cor preta E.C.C.P. na parte de trás.
Eu sempre soube que ECCP significava Esporte Clube Cobra Preta, que era o time da minha família, da minha rua, do meu coração. Mas ficava imaginando o que aquilo tinha a ver com a sigla CCCP, de um time de camiseta vermelha, que havia ficado em 4º lugar na Copa do Mundo de 1966 disputada na Inglaterra. Muitos anos depois, fui descobrir na internet que CCCP significava URSS no idioma russo cirílico.
O que havia na caixa? Vidrinhos de mercúrio, álcool e cânfora, analgésicos, uns comprimidos de melhoral, esparadrapos, pomadas, ataduras e outras coisas que, suponho, o Ataliba ganhava em alguma farmácia da cidade.
Enquanto fabricávamos a caixa de remédios, o Ataliba ficava me dizendo da importância de outras caixas de massagens que participavam de grandes jogos de futebol. Na sua voz pausada ele dizia assim: “imagina, Branco, como deve ser a caixa de remédios do time do Taguá, as maletas dos massagistas dos Grenais, a caixa de massagens usada pelo Mario Américo nos jogos da seleção brasileira, nas finais da copa do mundo…a nossa também será assim”.
Eu ficava pensando no efeito mágico que tais óleos, pomadas e cremes deviam fazer no campo de jogo, nos pés de craques como Ademir da Guia, Gerson, Alcindo, Rivelino, Danilo do Taguá, Dirceu Lopes, Didi, Tostão, Pelé, Jairzinho…
Minha estreia no Cobra foi levar a maletinha de massagens num jogo realizado pelo Campeonato Getuliense de Futebol de Salão de 1969 envolvendo o Cobra Preta contra o time da Serramalte. Fiquei o jogo inteiro segurando a maleta, para o caso de algum atleta precisar de atendimento, o que naquele dia não aconteceu.
Depois dessa estreia a situação se repetiu por muitos jogos. Lembro que nos intervalos das partidas eu passava a caixinha para as mãos calejadas do mestre marceneiro-treinador Ataliba, que ia com ela para o vestiário reforçar a preleção aos jogadores.
Não sei por que ele fazia aquilo. Ir ao vestiário com a caixinha de massagens para fazer a preleção. Mas como ele era o treinador vitalício do Cobra e naquela época os treinadores eram muito respeitados, eu nunca ousei perguntar.
Será que o Ataliba usava o formato retangular da caixinha para simular a quadra de futebol? E ficava criando esquemas e dando instruções táticas aos jogadores, mandando aproveitar espaços, chutar de tal jeito e coisas assim? Geralmente dava certo e no segundo tempo o time do Cobra acabava jogando melhor e muitas vezes virava o placar.
Aquela caixinha de massagens que fizemos acompanhou os times do Cobra por muito tempo e depois certamente foram feitas outras caixas, que nos dias de hoje são substituídas por bolsas, mochilas de couro ou algo parecido.
Na última vez que estive com o Ataliba, em maio de 2000, contei a ele essa estória, dizendo que eu tinha sido muito feliz na minha estreia no Cobra e devia isso a ele. Um pouco debilitado, ele apenas sorriu e me deu um carinhoso abraço.
Naquele momento a lembrança daquela caixinha voltou à minha memória, com suas cores e o cheiro daqueles esparadrapos, vidrinhos de álcool, pomadas…
Passados tantos anos me pergunto: será que ela ainda existe? E se existir, onde estará? Jogada num canto qualquer da casa de um veterano jogador do Cobra? Esquecida num porão junto a móveis empoeirados? No quarto de um menino que não conhece esta estória e guarda na caixa sua coleção de figurinhas de jogadores de futebol?
Embora lá estejam guardados muitos dos meus sonhos de guri, eu não preciso reavê-la, porque aquela caixinha, as lembranças do Bita e do Cobra Preta continuam existindo dentro de mim.
PROFESSOR
Autor: Branco Melatti
Atualmente os jogadores de futebol chamam seus treinadores de “professores”. Os verdadeiros professores não gostam muito da comparação, principalmente aqueles que possuem titulação em nível de mestrado, doutorado ou pós-doutorado. Mas para fazer justiça devo reconhecer que alguns poucos treinadores merecem ser chamados de professores.
Para ser professor é preciso ter vocação, estudo, dedicação, quase um sacerdócio. Nem todo professor é um Mestre, mas todo Mestre é professor, no sentido completo da palavra. O Mestre não precisa necessariamente freqüentar escolas para receber ensinamentos formais, pois pode superá-los através da experiência, vivência e sabedoria.
No mundo do futebol, quando nas entrevistas os jogadores se referem aos treinadores como professores, o que eles querem dizer é que tem um comandante, um guia ou líder que os motiva e inspira a buscarem melhores desempenhos. Para esses jogadores Líder é sinônimo de Professor.
Numa das minhas aulas na Universidade, quando debatia com os alunos sobre o tema Liderança, pedi a eles alguns exemplos de Líderes. Choveram respostas: Jesus, Ghandi, Obama, Fidel, Lula, o Papa, Antonio Ermírio, Abílio Diniz.
De repente, um aluno perguntou:
– e aí professor, quem é o seu exemplo de liderança?
Minha resposta estava pronta, programada:
– Meu exemplo de liderança é o Ataliba José Flores, um dos meus primeiros professores.
Como meus alunos não sabem quem foi Ataliba José Flores, fizeram respeitoso silêncio, esperando pela continuidade da minha exposição.
Prossegui dizendo a eles que a liderança não é inata ao ser humano e que embora algumas pessoas possuam naturalmente mais carisma e habilidades de comunicação e persuasão, a liderança pode ser aprendida, isto é, pode ser desenvolvida.
Ressaltei que o verdadeiro líder é aquele que influencia e inspira as pessoas a atingirem objetivos, alcançar resultados. Muitas vezes o líder não está mais presente e mesmo assim a equipe continua realizando e atingindo os sonhos anteriormente propostos.
Citando autores e definindo conceitos de líder, encerrei o tema dizendo que por isso o Ataliba Flores era para mim um exemplo de liderança.
Depois de terminada a aula, já em casa, comecei a pensar sobre as influências do Mestre Ataliba na minha vida e no Esporte Clube Cobra Preta.
Com ele aprendi coisas importantes, mas acima de tudo a gostar de futebol e do Esporte Clube Cobra Preta. Acredito que ele me influenciou muito mais que os professores das escolas formais que frequentei, principalmente em se tratando de disciplina, valorização do trabalho, honestidade e humildade, aspectos que foram ajudando a formar meu caráter durante a infância e adolescência vividas na cidade de Getúlio Vargas.
Ele não se envergonhava em cobrar mensalidades dos jogadores e simpatizantes do clube, fazer rifas e sorteios ou em pedir dinheiro no comércio para cobrir as despesas da agremiação.
Ele não se intimidava, mesmo sem dinheiro, em fretar um ônibus a cada domingo, para levar os times titular e aspirante ao interior do município para disputar os famosos “torneio-início” ou jogos amistosos, angariando recursos e, em algumas oportunidades, trazendo ovelhas ou bezerros como prêmios.
Ele não se incomodava em recolher depois dos jogos, as meias, calções e camisetas usadas pelos jogadores, conferindo-os e juntando-os de acordo com a numeração.
Uma das mais agradáveis recordações da minha infância é lembrar do Ataliba chegando em minha casa na manhã de segunda feira com os uniformes do Cobra Preta para minha mãe lavar. Depois da roupa lavada no tanque, eu ficava observando o balançar das camisas secando no varal, admirando o distintivo do time e os números das camisas: 8, 11, 14, 5, 7… Ficava contando o tempo que faltava para eu crescer e imaginava um dia jogar com uma daquelas camisas. Muitas vezes enquanto a mãe colocava peças no tanque eu vestia uma das camisas ainda suja e saía correndo pelo quintal, dando dribles, passes e chutes com minha bola de pano.
Nos meus doze anos de idade diariamente eu o ajudava (ou atrapalhava?) na oficina de altares Dallacorte, onde na maior parte do tempo passando às suas mãos madeiras, pincéis, tintas e vernizes, apenas ficava olhando ele trabalhar.
Seu Ataliba fazia de tudo em se tratando de móveis: mesas, bancos, guarda-roupas, armários. Inteligente, criativo, habilidoso. Consertava e reformava, inventava novas peças. Anotava os serviços e os nomes dos fregueses numa caderneta, mas não fazia anotações precisas sobre os clientes mais frequentes, aqueles que eram vizinhos ou mais conhecidos. Destes, aliás, acredito que não cobrava muitos dos serviços executados. Várias vezes eu o via em dúvida, por não lembrar se a pessoa havia pago pelo serviço. Então eu confirmava, pois de alguns eu mesmo havia recebido o pagamento e repassado a ele.
Durante a execução de seu trabalho semanal na oficina, sempre com o lápis atrás da orelha e o metro dobrado no bolso, ele ficava me contando sobre os jogos do Cobra Preta.
Em sua sabedoria, ele compreendia que na minha cabeça de guri eu não poderia absorver tudo aquilo que dizia. Então falava mais baixo e suave do que de costume, falava para si mesmo, fazendo uma espécie de reflexão sobre o que havia ocorrido durante a semana na vida do Esporte Clube Cobra Preta.
Não havia um dia sequer que não comentasse a respeito do time e, enquanto arrumava e encaixava as peças dos móveis que fabricava, ia falando daquilo que tinha que fazer no time, no desempenho dos jogadores, na escalação para o próximo jogo, nas despesas a serem quitadas, nas competições e campeonatos a serem disputados.
Por isso é que o Ataliba não precisava falar muito antes e durante os jogos. Nem depois. Tudo já havia sido previamente construído durante a semana na sua grande cabeça.
Cabeça de arquiteto, visão de marceneiro, linguagem de artesão.
Mestre. Líder.
Professor.
O PRIMEIRO CAMPEÃO
Autores: Branco Melatti e Beto Melatti
Em 2010 a CBF reconheceu a Taça Brasil e o Roberto Gomes Pedrosa (Robertão) como campeonatos brasileiros da década de 1960, outorgando títulos ao Santos, Palmeiras, Bahia, Botafogo e Fluminense, que passaram a contar com mais conquistas nas suas galerias.
Isso me trouxe à lembrança o título de primeiro campeão de futebol de salão de Getúlio Vargas, conquistado pelo Esporte Clube Cobra Preta.
Quando foi divulgado que haveria o 1º Campeonato Getuliense de Futebol de Salão a maioria dos times inscritos era vinculada às fábricas e aos bancos então existentes na cidade de Getúlio Vargas: Cervejaria Serramalte, Curtume Rio Grandense, Curtume Erê, Banco da Província, Banco do Brasil, entre outros.
Em 1967 o Esporte Clube Cobra Preta possuía apenas 6 anos de existência, não contava com recursos financeiros e ainda não tinha um time formado. Os rapazes que fundaram o Clube gostavam de ouvir música, fazer bailes e jogar pingue-pongue na sede da agremiação, naquela época situada à Rua Alexandre Bramatti, nº 959.
O futebol de salão era uma novidade no Brasil e sua prática estava começando a ser difundida. O time não tinha materiais esportivos, muito menos jogadores e treinador.
Então o Ataliba José Flores foi chamado para ser o treinador e começou a montar a equipe. Foi a partir desse fato que o ECCP passou a existir no futebol e já se fez notar a “visão” e a capacidade do Bita em garimpar craques. Chamou os irmãos Luizinho e Cláudio Prataviera, Vilson e Nédio Vani; convocou outros rapazes para jogar no time: o habilidoso Santo e os talentosos Kiko, Careca e Pimenta.
O Miguel Melatti ficou fora do time porque o Ataliba achou que ele corria muito e só queria fazer gols de “bicicleta” e no futsal antigo era muito difícil fazer tal jogada, devido ao peso da bola e às dimensões reduzidas da quadra, que deixavam pouco espaço para sua execução. Hoje, ao ver o Falcão efetuar um variado repertório de jogadas, rolinhos, “lambretas” e gols de bicicleta, o Miguel murmura pelos cantos: “Isso eu já fazia há 40 anos atrás”.
Com 10 anos de idade, eu não perdia um jogo do time na quadra do Banco da Província. Muitas vezes fugia de casa para ver os jogos. A equipe era sensacional e o Nédio Vani, um dos maiores craques da história do Cobra, acabava com os adversários marcando 2 ou 3 gols por partida. Descoberto pelo Ataliba, tornou-se o artilheiro daquele campeonato com apenas 17 anos.
Mas o que mais eu gostava era do uniforme do time. Ficava fascinado em ver era aquela maravilhosa camisa preta, com o distintivo ao centro, que, na minha modesta opinião, foi o uniforme mais bonito que o time já teve. Acredito que a mítica que envolve o nome Cobra Preta se deve àquela camisa. Ela era emblemática. Preta. Do Cobra.
Foi com esse memorável feito que no ano de 1967 o Esporte Clube Cobra Preta colocou, magistralmente e pela primeira vez, o seu nome na história do futebol de Getúlio Vargas, iniciando a sua trajetória de sucesso e grandes conquistas.
É certo que em Getúlio Vargas houve depois outros campeonatos, grandes equipes, vários times campeões, mas o primeiro, o número 1, esse título pertence ao Cobra e nada pode apagar esse fato histórico. É único, um marco. Definitivo.
Não será mais possível outro time ser o Primeiro Campeão de Getúlio Vargas. Somente o Cobra tem esse título. Para sempre.
PRIMEIRO CAMPEÃO DE FUTEBOL DE SALÃO DE GETÚLIO VARGAS
(Foto do acervo pessoal de Nédio Vani, disponível em www.bolichodogauderio.com)
A SELEÇÃO DE 1970
Autor: Branco Melatti
Os maiores problemas do esporte geralmente estão relacionados à imprensa. Existem pessoas que são hábeis em desfazer o que os outros fizeram. A maior parte dos jornalistas e comentaristas esportivos ganha a vida fazendo comentários a respeito de atletas, treinadores e clubes. É muito fácil falar, ainda mais quando os fatos já aconteceram, quando o jogo terminou. O difícil é fazer, colocar as coisas em prática.
E esse tipo de situação é muito comum no futebol. É aquela turma de corneteiros que fica dando palpite de fora, chamando o treinador de burro, tentando estragar a carreira de um jogador ou fabricando boatos que denigrem a imagem do clube.
Um fato semelhante aconteceu na história do Esporte Clube Cobra Preta, justamente no ano de 1970, quando a seleção brasileira sagrou-se tricampeã mundial, reafirmando o futebol-arte que havia deslumbrado os olhos do mundo nas copas de 58 e 62.
Naquele ano, como o Cobra Preta estava há 3 anos sem ganhar o campeonato amador de Getúlio Vargas, o treinador Ataliba Flores vinha sendo duramente criticado por meia dúzia de corneteiros, que ainda por cima se diziam simpatizantes do time.
Alguns linguarudos o acusavam de não entender de esquema tático, de ser contrário ao futebol-arte característico do jogador brasileiro e de só colocar pernas-de-pau para jogar no time do Cobra Preta.
Outros palpiteiros diziam que ele deveria ser polêmico como o João Saldanha e ousado como o Zagallo, que haviam formado aquela seleção campeã do mundo, colocando vários camisas 10 no mesmo time: Pelé, Rivelino, Tostão e Jairzinho, que antes da copa jogavam na posição de meia-esquerda nos seus clubes.
Depois de muito pensar, o Ataliba resolveu calar a boca dos críticos. Montou uma seleção. E fez isso silenciosamente, bem ao seu estilo: com calma, inteligência e sem fazer bravatas.
Ele sabia que naquela época os grandes times amadores de Getúlio Vargas eram patrocinados pela Cervejaria Serramalte e Curtume Riograndense, que sempre serviam de base para o Taguá.
Prevendo que o Taguá não disputaria nenhum campeonato no segundo semestre daquele ano, o Ataliba se adiantou aos outros times da cidade, convidando vários atletas profissionais do Taguá. Convocou o goleiro Queno, os laterais Caíto e Olavo, os zagueiros Adelci e Luizinho e os atacantes Nenê, Nédio e Tuto. E mesclou com os jogadores do Cobra Preta.
E para reger essa orquestra, chamou o maestro Danilo.
A SELEÇÃO DO COBRA PRETA DE 1970 conquistou o campeonato amador de Getúlio Vargas, dando espetáculos, jogando um futebol de alta categoria, um futebol-arte.
Na semana seguinte ao título, os mesmos que tinham criticado estavam querendo derrubar o Constâncio Gutierrez e colocar o Ataliba como treinador do Taguá…
TIME CAMPEÃO AMADOR DE 1970
(foto do acervo pessoal de Nédio Vani, disponível em www.bolichodogauderio.com)
QUADRADO MÁGICO
Autores: Branco Melatti e Beto Melatti
Na copa do mundo de 2006 a seleção brasileira tentou implantar um tal de quadrado mágico, para que Kaká, Ronaldinho Gaúcho, Adriano e Ronaldo se revezassem no ataque e também ajudassem na defesa. A tentativa não obteve sucesso, porque o treinador e os jogadores não conseguiram assimilar totalmente o funcionamento desse esquema tático. O Brasil ficou em 5º lugar, perdendo de 1 x 0 para a França nas quartas de final, naquele fatídico gol marcado pelo Henry enquanto o Roberto Carlos ajeitava as meias.
Embora a imprensa atribua essa armação tática ao treinador Carlos Alberto Parreira, o que muita gente não sabe é que essa estratégia de jogo começou no Esporte Clube Cobra Preta, criada pelo Adelci Petroli e aprimorada por Ataliba Flores.
Em 1975 foi realizado o Primeiro Campeonato de Futebol de Salão envolvendo equipes do Município de Getúlio Vargas, sendo que as partidas eram realizadas à noite, na quadra externa do Colégio Estadual Antonio Scussel.
Depois de grandes conquistas no futebol de campo e no futsal no começo dos anos 70, fazia alguns anos que o Cobra Preta não ganhava um título importante.
Comandados pelo Presidente Ricardo Schirmbeck Filho e pelo treinador Ataliba, no campeonato de 1975 a situação mudou de figura e o Cobra sagrou-se campeão invicto, marcando 52 gols e sofrendo apenas 12. Beto e Adelci foram os artilheiros da competição, marcando 19 e 15 gols, respectivamente.
O time titular era formado por Gavião, Adelci, Cláudio, Gilmar e Beto. Faziam parte do grupo o Goleiro Paulo Bianchi e os jogadores Oscar, Zé Tarcisio, Calegari e Lebrão, entre outros.
Naquele ano o Cobra Preta além de fazer uma renovação no elenco, promovendo vários jogadores das categorias de base, apresentou uma inovação em termos táticos que posteriormente vários treinadores passaram a imitar.
Tudo aconteceu pelo fato do Adelci Petroli ter passado a assistir alguns vídeos da seleção holandesa, vice-campeã mundial de 1974, que havia surpreendido o mundo com a famosa “laranja mecânica”, também conhecida como “carrossel holandês”, esquema tático criado pelo treinador Rinus Michels, inspirado na seleção da Hungria de 1954.
Naquela época todos os times de futebol de salão do Brasil jogavam com 2 zagueiros, 1 jogador no meio e 1 jogador na frente, num esquema convencional chamado de 2-1-1.
O Adelci fez um desenho numa folha de caderno propondo uma mudança tática para que o Cobra passasse a jogar num 3-1: um zagueiro central atrás, dois laterais e um atacante.
Depois ele mostrou o desenho ao Ataliba, que aceitou de imediato a inovação, apenas sugeriu mudanças nas nomenclaturas, passando a chamar o zagueiro de “fixo”, os laterais de “alas” e o atacante de “pivô” e colocou a obrigatoriedade do revezamento, ou seja, os alas e o pivô deveriam “rodar” na quadra, fazendo uma espécie de “carrossel”.
Com essa revolução no modo de jogar, aliada à alta qualidade da equipe, o Cobra Preta conquistou com folga o campeonato daquele ano, mantendo a hegemonia durante vários anos e passando a ser copiado pelos outros times na forma de jogar.
A grande diferença entre o Ataliba e o Parreira, é que o primeiro criou um desenho tático que lembra um losango, enquanto que o segundo tentou copiar a ideia estruturando um quadrado.
Por isso é que não deu certo na seleção.
Mas se o Parreira tivesse tido a humildade de consultar o Ataliba, o Brasil já seria hexacampeão mundial!
O PRÊMIO DE GOLEADOR
Autor: Nédio Vani
Com 15 para 16 anos disputei o primeiro campeonato de futsal no colégio Cristo Rei em uma quadra feita de lajotas, embaixo do salão de atos do colégio. Me destaquei mesmo sendo principiante, me consagrando goleador do torneio e ainda campeão do evento, levando 3 medalhas para casa.
Com a construção da quadra de futsal do Banco da Província, o Ataliba me levou para jogar na equipe do Cobra Preta, pois já me destacava também no futebol de campo, jogando no juvenil do Taguá. Em 1967 tive o privilégio de sair campeão do que se chamou 1º campeonato Provinciano de futsal de Getúlio Vargas, tendo sido o artilheiro do campeonato, marcando 26 gols. O vice-artilheiro foi o Kiko, também do Cobra, com 23 gols. Juntos nós dois marcamos 49 gols.
O time era formado por Luizinho e Cláudio Prataviera, eu e meu irmão Vilson, Valdir Vitelli (Careca), Roberto Pavinato (Pimenta), Santo Rafagnin e Luiz Airton Dias (Kiko). O técnico era o Ataliba José Flores.
Foi o primeiro campeonato oficial de futsal da cidade e, não sei porque, na época criaram uma maneira diferente de premiar o goleador do campeonato. Não teve entrega de troféu, nem de medalha ao maior goleador. O que eu ganhei no dia da premiação na quadra do Banco da Província foi um papel quadrado, com espessura de um papelão, escrito “Cine Teatro Vera Cruz, permanente por 1 mês” e embaixo tinha a assinatura do Arnaldo Bianchi, responsável pela bilheteria e controle de acesso ao cinema.
O Cine Teatro Vera Cruz foi inaugurado na década de 1960, sendo por muitos anos a principal opção de lazer da sociedade Getuliense. As sessões de cinema ocorriam às quartas, sábados e domingos (à noite) e também aos domingos à tarde (matinê).
Para a turma da minha geração, que estava com 17, 18 anos, o grande desafio era conseguir entrar nas sessões noturnas de cinema, quando o filme era impróprio para menores. Naquele tempo a lei era muito rígida e era proibido aos menores de 18 anos frequentarem alguns locais, como clubes, bailes e cinema.
O Sr. Arnaldo Bianchi era quem autorizava ou não a entrada da rapaziada no Cine Vera Cruz. Devido ao fato da cidade ser pequena ele praticamente conhecia toda a juventude que frequentava o cinema. Os rapazes tentavam driblar o Bianchi, mas era muito difícil um menor de idade entrar no cinema.
O homem era rigoroso, inflexível. Às vezes, quando estava de bom humor ele deixava entrar um ou outro que estava perto de completar os 18 anos. Vendo isso os outros rapazes se animavam….mas quando iam tentar entrar, o Bianchi impedia novamente o acesso. Era um jogo de gato e rato.
Naquele ano eu tinha feito 18 anos e com o prêmio de goleador pude assistir a todos os filmes das quartas, sábados e domingos, por 1 mês gratuitamente. O cômico das minhas entradas no cinema, foi que um dia esqueci a permanente em casa, e o Bianchi mesmo sabendo que eu já tinha entrado uns 15 dias, me mandou mostrar a PERMANENTE.
Eu relutei, dizendo:
– Mas…. Seu Bianchi, o senhor já me deixou entrar várias vezes no cinema…
Ele respondeu, muito sério:
– Não importa. Só pode entrar com a PERMANENTE.
Dei meia volta e saí correndo para buscar a credencial na minha casa, que ficava a duas quadras do cinema. Quando voltei, reparando que eu estava ofegante, o seu Bianchi observou:
– Pra que tanta pressa, rapaz?
– Não posso perder o CANAL 100, respondi faceiro.
ESPORTE CLUBE COBRA PRETA – Futsal nos seus 50 anos
Autor: Edino Carlos Farias
O Esporte Clube Cobra Preta foi fundado em 05 de abril de 1961, e desde então passou a participar dos campeonatos de futebol. Mais tarde, adotou o futsal, mesmo antes da regularização do Conselho Municipal de Desportos.
Nos campeonatos de futsal, embora fossem organizados por várias entidades esportivas diferentes, era conferido ao vencedor o título de Campeão Municipal do ano.
Em alguns anos não houve campeonatos e, em outros, eles foram organizados no então bairro de Estação. Mesmo assim, o time classificado em primeiro lugar no evento era considerado o Campeão Municipal.
Na verdade, desde a fundação desse clube até os dias de hoje, poucos são os registros oficiais de clubes campeões municipais de futsal.
O clube Cobra Preta sempre contou com uma equipe de adultos e uma equipe de veteranos. Participou de campeonatos municipais e também de campeonatos regionais.
Durante os seus 50 anos de existência, conforme registro, fotos e faixas de campeões, por 13 vezes o E.C. Cobra Preta colocou faixa de Campeão Municipal na categoria adulto. Foi campeão nos de 1967, 1971, 1973, 1975, 1976, 1979, 1980, 1984, 1986, 1992, 1993, 1996 e 2000.
O E.C. Cobra Preta é um exemplo de um clube de resistência contra o tempo, pois seus fiéis torcedores, originários de famílias tradicionais de Getúlio Vargas, incutiram nos mais jovens as cores preta e amarela, como um símbolo de saúde e lazer. Juntando-se a essa tradição, outros desportistas abraçaram o Cobra Preta com orgulho e paixão.
O Sul do país conhece o Cobra Preta por intermédio dos getulienses que foram morar longe desta terra, levando consigo as cores do clube do seu coração. Podemos dizer que o Cobra é o embaixador esportivo do município de Getúlio Vargas, pelas inúmeras vezes que seus atletas foram convidados a participar de jogos de confraternização em outros estados. É, sem dúvida, o clube que mais representou o município fora de suas raízes.
Na minha trajetória esportiva – algumas vezes como árbitro, outras vezes como Coordenador ou Presidente do CMD -, tive no E.C. Cobra Preta o maior colaborador em todas as atividades desportivas realizadas.
Na verdade, em qualquer reunião do esporte getuliense, lá estava um representante do Cobra para participar e colaborar. A presença de Ataliba Flores sempre foi fundamental, pela sua calma, pela sua paixão pelo clube e pelo esporte de Getúlio Vargas.
Convém esclarecer que pesquisei sobre o Cobra somente pelo seu futsal, mas devo registrar que esse clube disputou em grande número de modalidades esportivas em torneios e campeonatos, mostrando que não somente o futebol mora no coração dos seus torcedores. Nos Jogos Abertos da Primavera, por exemplo, o Cobra sempre esteve presente, conquistando muitos primeiros lugares.
Em 2011, ano de comemoração do cinquentenário do Cobra, deixo o registro dos nomes dos seus Presidentes – forma pela qual homenageio também todos os atletas que vestiram o uniforme do clube. Foram Presidentes: Arno Zadra, Ataliba Flores, Paulo Filippon, Armando Melatti, Cláudio Prataviera, Miguel Melatti, Ricardo Schirmbeck Filho, Valmor Somenzi, Paulo Roberto Bianchi e Vivaldino Dalastra.
Tenho certeza de que, nesses cinquenta anos, o seu Patrono, Ataliba Flores, e seus pioneiros fundadores estão felizes com seu clube, que nasceu na Rua Alexandre Bramatti e vive neste universo de “mente sã num corpo são”.
(Publicado originalmente em abril de 2011, como parte integrante do Livro MEMÓRIAS ESPORTIVAS – Lembranças e Curiosidades Getulienses – páginas 85 a 88)
O TATIQUÊS NO FUTEBOL
Autores: Branco e Beto Melatti
Tempos atrás Cláudio Coutinho introduziu na linguagem do futebol termos como “overlapping e ponto futuro”, enquanto que o Lazaroni tentava explicar o que era “treinamento invisível e formatação”. Quem acompanha hoje o noticiário esportivo e os comentários dos analistas de futebol sabe que, nos últimos anos, os técnicos passaram a argumentar com frequência o fato dos jogadores não entenderem o que foi pedido para que eles fizessem durante o jogo. Muitas vezes isso acontece quando o time não joga nada e acaba perdendo a partida.
Recentemente, os técnicos do Grêmio e do Flamengo usaram essa estratégia para explicar os maus resultados das suas equipes. É muito difícil saber quem está certo. Se foram os jogadores que não entenderam a mensagem ou se foi o treinador que não conseguiu explicar corretamente a sua proposta tática. Mas o que realmente existe, e se confirma nas entrevistas pós-jogos é uma linguagem rebuscada, um palavreado esquisito que não combina com a simplicidade e com a linguagem popular dos torcedores do futebol brasileiro.
Acredito que muita gente tem dificuldades em entender o que o técnico da seleção brasileira quer dizer com “extremos desequilibrantes”. Para entender isso, é necessário fazer pesquisas e estudos. Não seria mais fácil ele esclarecer que são “pontas dribladores”? Ou então apenas dizer: “fazer jogadas como o Tuto e Nédio faziam no Taguá”?
Mas não é apenas o técnico da seleção que usa esse tatiquês, muitos outros treinadores, jovens ou experientes, tem se utilizado desse repertório exagerado. Será que é para debater com os teóricos do futebol, provocar a imprensa ou confundir os torcedores?
Digo isso porque fica difícil compreender tal vocabulário. Termos como “amplitude, jogo propositivo, jogo reativo, box-to-box, transição, superioridade numérica, performance, ritmista, linha alta e linha baixa, gesto técnico, entrelinhas, quebrar linhas, protagonista, jogo de posição, pressão pós perda, jogo apoiado, terço final e uma infinidade de outras expressões que só confundem a cabeça dos torcedores.
Por exemplo, a expressão “pressão pós perda” significa que, quando um time perder a bola deve pressionar intensamente o setor do campo onde isso aconteceu, de modo a recuperar logo a pelota. Aqueles que conheceram o Constâncio Guterrez, lendário treinador do Taguá, sabem que ele usava apenas um jargão para fazer isso, gritando à beira do campo: “Chega junto, patrão!”
E quanto aos termos protagonista e ritmista? O que se pode deduzir?
Que jogador protagonista, é o que o maestro Danilo executava na meia cancha daquele baita time do Taguá, do final da década de 1960?
E ritmista, é o que o Adelci fazia no timaço do Cobra Preta de 1975, fazendo a equipe jogar de acordo com a sua categoria e liderança?
Pode ser que essa eloquência na intenção de se igualar a terminologia do futebol brasileiro aos níveis internacionais, eleve e aprimore o conhecimento dos treinadores, dirigentes, jornalistas e analistas esportivos. Mas, em se tratando de jogadores e torcedores brasileiros, é bem melhor ficarmos no feijão-com-arroz, tratando as coisas com singeleza e astúcia.
Daquele jeito singular que o treinador Ataliba José Flores, do Esporte Clube Cobra Preta, fazia quando o time estava jogando mal e levando um baile do adversário.
Ele não perdia tempo com discurso ou lero-lero. Apenas reunia os jogadores no intervalo da partida e sem meias palavras, soltava a sua máxima:
– “VÃO JOGAR, SEUS MURRINHAS…”